viernes, 7 de febrero de 2014

Testimonios Peregrinos

DE MOCHILA, CRUZANDO A ESPANHA A PÉ*

Por Guy Veloso (texto e foto)

“Caminhar faz muito bem à saúde, meu filho” – disse uma tia antes de eu embarcar à Espanha para “fazer umas trilhas”, como havia espalhado na família. Ela só não sabia que seriam 800 quilômetros…
Havia escondido de todos esta minha pretensão. Era o ano de 1993. Tinha 23 anos e – como diziam – “uma vida inteira pela frente”. Recém formado em Direito, antes de exercer a profissão queria em um mês imitar os passos dos peregrinos medievais, cruzando a pé e de mochila todo o norte da Espanha. De ponta a ponta. Seria um tempo para pensar naquela “vida inteira” que estava por vir, fora dos bancos acadêmicos. Era o que hoje está tão em moda entre empresários, socialites, artistas e outros maios ou menos endinheirados: o ano (ou mês) sabático.
Comecei em passos trôpegos em uma manhã chuvosa desde uma cidadezinha francesa, Saint-Jean-Pied-de-Port, bem perto da fronteira com a Espanha. Para trás ficaram sete anos, mais lembro agora perfeitamente do cheiro de mato molhado pairando no ar junto com a neblina, ao subir os Montes Pirineus por trilhas de pastores em meio a pastagens e bosques desertos. Recordo até os pensamentos, a alegria de estar iniciando uma grande aventura, como também o medo, pavor de não conseguir. Sim, pois o assombro da derrota era aquela altura mais voraz do que temores naturais de sobrevivência naquele lugar nada familiar.
E eu era bastante radical para a idade: deveria completar o trajeto, sempre caminhando, a partir dos Pirineus franceses, sem nunca ceder a tentação de pegar uma carona. Na verdade, esperava que ao final, ao chegar na cidade de Santiago de Compostela depois de um pouco mais de um mês, resolvesse algumas questões interiores e – principalmente – conhecesse mais de mim mesmo. Chegar, naquela época, era questão de honra, quase uma obsessão. Mas também, um prêmio, troféu.
Em alguns dias adaptei-me ao cotidiano: acordar cedo, caminhar o dia inteiro (média de 25 quilômetros), passar por dezenas de povoados perdidos no tempo (com suas heranças magníficas, catedrais e castelos), e pela noite empanturrar-me de vinho (descobrindo as diversas nuances de acordo com os micro-climas do norte espanhol à medida que avançava). O sol raiva pungente sobre meu rosto, por vezes a chuva. A mesma que beijava tanto minha face quanto os campos verdes ao meu redor. Cada dia diferente do outro. Cada dia de cada vez.
Progredia lentamente, geralmente sozinho, pelas veredas rurais, seguindo indicações em forma de setas pintadas sempre em amarelo nas árvores, pedras, troncos etc. As “flechas amarelas” eram minhas estrelas-guias. Por mais que eu tivesse em mãos alguns mapas, era pelas marcações amarelas que eu me orientava. Levava na mochila sempre água e algumas frutas, cujas sementes eu jogava na beira da estrada. Imaginava que ali poderia crescer uma macieira, laranjeira ou videira, sei lá. Divagava que no futuro viria a alimentar um outro peregrino de passo por esta mesma estrada.
Dormia em albergues especiais espalhados por toda a Rota, mantidos por associações de peregrinos ou pelas prefeituras locais. Outras vezes, ficava hospedado em monastérios e colégios católicos. Locais simples, rústicos até, mas com tudo que alguém com fome e extremamente cansado pode necessitar para transformar aquilo no Palácio do Marajá de Jodhpour: uma cama limpa, cozinha, banheiro. E só.
Ah, tinha também os amigos. Pessoas de todas as partes do mundo que se espremiam entre beliches e mochilas coloridas espalhadas pelo chão. Gente que eu nunca tinha visto na vida, mas que logo estavam dividindo comigo um pouco de sua comida, trocando informação sobre as trilhas ou embebedando-se nas tabernas. Todos dormiam juntos em um grande quarto, e na maioria das vezes até o banheiro era dividido por homens e mulheres.
Ali não havia divisão de classes. Estavam todos com os mesmo objetivos, deitando em camas iguais, passando pelas mesmas dores (bolhas, tendinites, cansaço) e ansiedades. Compartilhávamos todos os mais secretos sentimentos e segredos. Éramos uma grande família peregrina. Aquela terra, aquele caminho nos unia.
Dia após dia, milha depois de milha. Montanhas, florestas, campos secos e cidades. O cansaço, por vezes a solidão. Não raro, achava estar louco por passar por tudo aquilo.
No Caminho de Santiago, deparamos com nossos horizontes e com nossas fronteiras também. Descobrimos pequenas coisas que não notamos em nossa vida diária. Vemos o valor de um copo d’água por termos passado sede, ou de um pedaço de pão por termos passado fome. Um sorriso ou palavra de incentivo. No Caminho, damos de cara com nossos medos e vaidades. Nos perdemos; nos encontramos. E avançamos sempre a oeste. Rumo a Compostela.
Adentrei à cidade de Santiago em uma terça, às 11:15 do dia 13 de julho de 1993. Lembro-me como hoje de meu júbilo ao ver pela primeira vez as torres de pedra da imensa Catedral – onde o trajeto oficialmente termina. Durante meus últimos passos no Caminho de Santiago, mesmo que extremamente feliz de concretizar um sonho, vi que o melhor já tinha passado. Que “chegar” era apenas um detalhe. Que o caminho que ficou para trás – junto com suas experiências –, isto sim, era a verdadeiro troféu, aquele que eu guardarei para o resto da vida.
De lá para cá, mudei bastante. Não exerci a advocacia, rompi com um amor e com vários conceitos e preconceitos. Criei sonhos e enterrei mágoas. E muito disto foi em conseqüência desta minha viagem.
De lá até os dias de hoje, tentei passar esta minha experiência adiante. Assim como eu desenhei estas letras. Assim como as sementes que joguei à estrada. Se elas vicejarão, crescerão e um dia alimentarão outro peregrino que – como eu – cruzou aqueles campos mágicos, eu não sei. Terá valido a pena de qualquer forma. E muito.

Publicado no Jornal Valor Econômico, 1999. Foto: Catedral de León, slide. Mis imagens: http://www.fotografiadocumental.com.br/?p=424

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