Daniel Agrela é autor de “O Guia do Viajante do Caminho de Santiago, uma vida em 30 dias”
O autor de “O Guia do Viajante do Caminho de Santiago…” num ponto da rota milenar

Daniel Agrela
“Chega um momento na vida que é preciso parar. É preciso passar sua vida a limpo, ver o que deu certo, o que deu errado, entender as angústias que persistem, os medos e os sonhos ainda por realizar. É isso que vim fazer aqui, me encontrar”. Foram essas as palavras escolhidas pela professora Nelly, uma francesa de 58 anos que conheci no ponto mais alto dos Pirineus, serra ao sul da França em trecho que marca o início do Caminho de Santiago.
Ela era uma das peregrinas com mais de 50 anos que, por motivos diversos, recorrem à rota milenar. Estatísticas atuais dão conta que 20% dos viajantes que fazem o Caminho são idosos, pessoas que ignoram eventuais limitações físicas e encaram os 800 quilômetros de caminhada até a cidade de Santiago de Compostela.
Já havia visto Nelly na noite anterior no albergue de peregrinos em Saint Jean Pied Port, mas como estava apreensivo com meu primeiro dia de caminhada, não conversamos. Fiquei focado no mapa, um assustador mapa, que mostrava um gráfico topográfico de como seria o percurso no dia seguinte: partiria de uma altitude de 200 metros do nível do mar para 1400 metros, uma subida assustadora para os mais experientes, que dirá para um principiante.
Distância do percurso: 26 quilômetros. Quase não dormi.
O mapa dos 26 km entre
O mapa dos 26 km: de uma altitude de 200 metros do nível do mar para 1400 metros
Na manhã seguinte, fui um dos últimos a deixar o albergue. Chovia intermitentemente, ventava, e a visibilidade era bem ruim. A medida em que eu andava percebia que estava só – outono é uma época com poucos viajantes pelo Caminho. A subida era íngreme, parecia interminável, e percebia que meus 26 anos não representavam vantagem alguma naquela caminhada. Sabia que após o quilômetro 8 não haveria mais lugar para se abrigar, continuei a caminhada com ritmo forte rumo a cidade de Roncesvalles.
O percurso dificultava a cada passo, o mau tempo não dava trégua. Cansado, já não sabia se estava no caminho certo ou errado, a insegurança aumentava. Ao passar pelo quilômetro 20, no ponto mais alto daquela etapa, vi – em meio a chuva e névoa, a primeira peregrina a jornada. Era Nelly.
Com o guarda-chuva aberto, sentada em uma pequena mureta, ela mantinha os costumes de seu país ao se alimentar com uma apetitosa baguete de queijo brie. Ao me aproximar, completamente molhado, fui saudado por Nelly com o tradicional cumprimento dos peregrinos, o “Buen Camino”, e logo em seguida convidado a compartilhar seu lanche e seu guarda-chuva. Em poucos minutos, já éramos amigos, mesmo sabendo pouco um do outro. Sentados na mureta, como que pegando fôlego para continuar, a professora me contou um pouco sua história. Isso é algo bastante comum no Caminho, falar sobre questões pessoais a meros desconhecidos.
A chuva incessante dificulta o avanço, mas todos persistem
A chuva incessante dificulta o avanço, mas todos persistem
Filha única, coube a ela cuidar dos pais por quase toda a vida. Ao seus 20 anos, o pai fora vítima de AVC e 15 anos mais tarde sua mãe foi diagnosticada com Alzheimer. Não casou, não teve filhos. Sua vida, enquanto não estava na sala de aula, era dar atenção e assistência aos queridos pais.
- Fazia isso com paciência. Não via como um fardo a ser carregado. Tinha prazer em estar com os dois, disse ela.
Nelly estava emocionada. Disse-me que os pais faleceram num intervalo de dois meses, primeiro a mãe e depois o pai.
- Não suportaram ficar separados, comentou Nelly.
Perguntei então por que ela estava fazendo o Caminho de Santiago.
- Vim a esse período sabático para me encontrar, passar minha vida a limpo e buscar um novo sentido para ela. Não sei o que me espera. Quando voltar para casa, não terei mais atividades nem a companhia dos meus pais. E isso me aterroriza!, comentou Nelly.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, admirando a paisagem e esperando a chuva diminuir. Foi então que retomamos o fôlego e seguimos caminhando. À frente, ia Nelly. Caminhando como uma jovem garota, morro acima, desconhecendo qualquer dificuldade.
Passo a passo, seguia a professora, cheia de esperança em busca de seu objetivo. Encontrar a si própria.
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* Daniel Agrela é jornalista e autor do livro “O Guia do Viajante do Caminho de Santiago, uma vida em 30 dias”.