Por Ovidio de Sousa Vieira
Não vou entrar em citações das inúmeras Histórias de Portugal que estudam a rede viária nacional na Idade Média e na Idade Moderna, rede viária escassa, perdendo em larga escala para a rede fluvial e para a navegação de cabotagem.
As estradas do litoral, por essas razões, eram raras ou inexistentes - até onde chegavam os barcos não se abriam estradas. Existe um muito interessante trabalho da autoria de Joaquim Romero de Magalhães, no vol. III da História de Portugal de José Mattoso, a partir da página 315, sob o título "A Estrutura das Trocas", que, como o nome indica, estuda as relações comerciais no Reino na Idade Moderna - muito distintas das da Idade Média - onde já se vislumbra alguma rede viária ao nível costeiro. A leitura das páginas 321 à 325 pode fazer muita luz à interpretação de muitas realidades com que nos deparamos quando tentamos entender as relações das estruturas que permitiam o trânsito e o comércio de pessoas e bens.
Se recuarmos à Idade Média, a conversa terá que ser outra pois estrada ou caminho real era um luxo que poucos concelhos possuíam.
Além disso, importa referir que todo o traçado do Caminho Central, entre o Porto e Valença, está devidamente suportado por pareceres técnicos e académicos de referência, nomeadamente de arqueólogos. Existem relatos, continuidade no tempo (primordial para a definição de um Caminho), história, lendas (todos conhecem a Lenda do Galo de Barcelos)… Os testemunhos são imensos, quer em documentos directos, quer nos indirectos. Foram anos de estudo e de investigação (de levantamentos cartográficos, fotográficos, epigráficos…), a qual ainda continua e será tema de debate por muitos e longos anos. Também o Caminho tem que percorrer o seu Caminho.
A Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago tem em sua posse o estudo pormenorizado de todo o Caminho, feito palmo a palmo por gentes do Minho e da Galiza, com recurso, quando necessário, ao apoio de historiadores, arqueólogos e investigadores locais, para além do povo – sempre o melhor testemunho do Caminho.
Cartografia, toponímia, antropologia, etnografia, geografia, geomorfologia, sociologia, paisagem, relevo, história, diplomática, paleografia, fotografia aérea, urbanismo, ordenamento do território, etc., etc., são disciplinas que se têm que cruzar para estudar um Caminho, pois todas elas o validam ou o negam.
Por exemplo, desde não há muito tempo, existe um novo recurso valiosíssimo para apoiar o estudo das estruturas de viação. Trata-se da cartografia histórica do exército português com catálogo, descrição e pré-visualização (infelizmente não com a qualidade desejável) online. Já tentaram validar algum Caminho com base em cartografia histórica?
Mesmo que o façam, tenham em atenção que ela só nos documenta, em princípio, a realidade da Idade Moderna. Fica aqui o link do Projecto SIDCARTA (Sistema de Informação para Documentação Cartográfica: o Espólio da Engenharia Militar Portuguesa) para os mais curiosos e para apoio e sustentação daquilo que estudarem - http://am.exercito.pt/bibliopac/bibliopac.htm
Deixo-vos, por último, parte de um texto, publicado em 2002 - tem 10 anos, tenham isso em atenção - da autoria de João Gomes de Abreu de Lima, Presidente da Direcção da Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago.
“Há cerca de doze séculos, ainda Portugal não sonhava com a carta de alforria, correu brado que o corpo do Apóstolo S. Tiago dera à costa da Galiza, coberto de vieiras, numa enseada da ria de Arosa.
A incredulidade inicial foi vencida com o beneplácito da Santa Igreja, gerando-se uma onda de devoção que varreu a Europa inteira e que traria a Compostela, onde o corpo ficou sepultado, milhares e milhares de peregrinos de todas as condições sociais, quantas vezes ocultados sob o burel da mendicância, rogando auxílio e pagando promessas. E nos anos santos, proclamados sempre que a festividade de 25 de Julho acontecia ao domingo, a afluência recrudescia, pois lograva-se a indulgência plenária concedida pela Santa Sé desde 1122.
Trilhando montes e vales, vencendo os rios, rasgando densas florestas, os peregrinos geriam o seu percurso dirigindo-se a Santiago de Compostela pelos itinerários mais favoráveis, procurando sempre a rapidez, a segurança e a comodidade possível, desviando apenas se alguma igreja ou convento lhes proporcionasse um auxílio de emergência ou a veneração de um lugar santo. E assim se foram consolidando itinerários seguros que cobriram toda a Europa, convergindo num percurso único a partir da Navarra, hoje vulgarmente conhecido por Caminho Francês.
Foi por estes caminhos que correu a mensagem do Evangelho, levando a todo o velho continente as sementes da civilização cristã, verdadeiro alicerce da cultura europeia. Daí o reconhecimento, já formalizado, do Caminho Francês como principal Itinerário Cultural Europeu e de todo o seu repositório cultural como Património da Humanidade.
Mas também de Portugal se peregrinava a Compostela e inúmeros trajectos permitiam a viagem. Um deles, contudo, logrou maior distinção já na dobragem do primeiro quartel do séc. XIV, com a construção das pontes de Barcelos e de Ponte de Lima. Designamo-lo por Caminho Português, não porque outros não hajam, mas porque este se constituiu como a espinha dorsal de quase toda a rede jacobeia do nosso país. Lisboa, Coimbra, Porto, Barcelos, Ponte de Lima e Valença definiam a sua directriz e a ele afluíam as vias secundárias provenientes do interior.
Não se tratava, efectivamente, de uma rota exclusiva de peregrinos. Era uma estrada comum, beneficiada pela movimentação contínua de viandantes, que lhes facultava os apoios necessários na realização das jornadas. Igrejas, capelas, conventos, pontes, fontes, estalagens e hospitais eram a garantia real do apoio entre as povoações. E os quadrilheiros proviam a conservação das calçadas, as forças regulares rondavam para impor a ordem, e a vizinhança, prestimosa e hospitaleira, informava, acudia e enchia de vida os campos e as bouças.
Mas este cenário foi-se apagando, lentamente, com a reconversão da rede viária, que criou novas alternativas e reformulou trajectos puídos pelo uso desde a ocupação romana.
Quando há meia dúzia de anos, a Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago, criada em Ponte de Lima para incentivar a redescoberta das peregrinações jacobeias, meteu ombros à tarefa de identificar o velho itinerário, de o recuperar e de promover a sua utilização e salvaguarda, não imaginava as dificuldades que se lhe poriam. Mas tudo foi superado – a investigação foi bem conduzida; os troços obstruídos foram limpos ou substituídos por alternativas pontuais; a direcção para Santiago foi sinalizada com as inconfundíveis setas amarelas (e o retorno com setas azuis para alcançar Fátima); e tem-se levado a efeito uma excelente promoção ilustrada com a publicação de brochuras e roteiros e, sobretudo, com o apoio logístico dos peregrinos que, em número crescente, vêm solicitando a sua intervenção.”
Se recuarmos à Idade Média, a conversa terá que ser outra pois estrada ou caminho real era um luxo que poucos concelhos possuíam.
Além disso, importa referir que todo o traçado do Caminho Central, entre o Porto e Valença, está devidamente suportado por pareceres técnicos e académicos de referência, nomeadamente de arqueólogos. Existem relatos, continuidade no tempo (primordial para a definição de um Caminho), história, lendas (todos conhecem a Lenda do Galo de Barcelos)… Os testemunhos são imensos, quer em documentos directos, quer nos indirectos. Foram anos de estudo e de investigação (de levantamentos cartográficos, fotográficos, epigráficos…), a qual ainda continua e será tema de debate por muitos e longos anos. Também o Caminho tem que percorrer o seu Caminho.
A Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago tem em sua posse o estudo pormenorizado de todo o Caminho, feito palmo a palmo por gentes do Minho e da Galiza, com recurso, quando necessário, ao apoio de historiadores, arqueólogos e investigadores locais, para além do povo – sempre o melhor testemunho do Caminho.
Cartografia, toponímia, antropologia, etnografia, geografia, geomorfologia, sociologia, paisagem, relevo, história, diplomática, paleografia, fotografia aérea, urbanismo, ordenamento do território, etc., etc., são disciplinas que se têm que cruzar para estudar um Caminho, pois todas elas o validam ou o negam.
Por exemplo, desde não há muito tempo, existe um novo recurso valiosíssimo para apoiar o estudo das estruturas de viação. Trata-se da cartografia histórica do exército português com catálogo, descrição e pré-visualização (infelizmente não com a qualidade desejável) online. Já tentaram validar algum Caminho com base em cartografia histórica?
Mesmo que o façam, tenham em atenção que ela só nos documenta, em princípio, a realidade da Idade Moderna. Fica aqui o link do Projecto SIDCARTA (Sistema de Informação para Documentação Cartográfica: o Espólio da Engenharia Militar Portuguesa) para os mais curiosos e para apoio e sustentação daquilo que estudarem - http://am.exercito.pt/bibliopac/bibliopac.htm
Deixo-vos, por último, parte de um texto, publicado em 2002 - tem 10 anos, tenham isso em atenção - da autoria de João Gomes de Abreu de Lima, Presidente da Direcção da Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago.
“Há cerca de doze séculos, ainda Portugal não sonhava com a carta de alforria, correu brado que o corpo do Apóstolo S. Tiago dera à costa da Galiza, coberto de vieiras, numa enseada da ria de Arosa.
A incredulidade inicial foi vencida com o beneplácito da Santa Igreja, gerando-se uma onda de devoção que varreu a Europa inteira e que traria a Compostela, onde o corpo ficou sepultado, milhares e milhares de peregrinos de todas as condições sociais, quantas vezes ocultados sob o burel da mendicância, rogando auxílio e pagando promessas. E nos anos santos, proclamados sempre que a festividade de 25 de Julho acontecia ao domingo, a afluência recrudescia, pois lograva-se a indulgência plenária concedida pela Santa Sé desde 1122.
Trilhando montes e vales, vencendo os rios, rasgando densas florestas, os peregrinos geriam o seu percurso dirigindo-se a Santiago de Compostela pelos itinerários mais favoráveis, procurando sempre a rapidez, a segurança e a comodidade possível, desviando apenas se alguma igreja ou convento lhes proporcionasse um auxílio de emergência ou a veneração de um lugar santo. E assim se foram consolidando itinerários seguros que cobriram toda a Europa, convergindo num percurso único a partir da Navarra, hoje vulgarmente conhecido por Caminho Francês.
Foi por estes caminhos que correu a mensagem do Evangelho, levando a todo o velho continente as sementes da civilização cristã, verdadeiro alicerce da cultura europeia. Daí o reconhecimento, já formalizado, do Caminho Francês como principal Itinerário Cultural Europeu e de todo o seu repositório cultural como Património da Humanidade.
Mas também de Portugal se peregrinava a Compostela e inúmeros trajectos permitiam a viagem. Um deles, contudo, logrou maior distinção já na dobragem do primeiro quartel do séc. XIV, com a construção das pontes de Barcelos e de Ponte de Lima. Designamo-lo por Caminho Português, não porque outros não hajam, mas porque este se constituiu como a espinha dorsal de quase toda a rede jacobeia do nosso país. Lisboa, Coimbra, Porto, Barcelos, Ponte de Lima e Valença definiam a sua directriz e a ele afluíam as vias secundárias provenientes do interior.
Não se tratava, efectivamente, de uma rota exclusiva de peregrinos. Era uma estrada comum, beneficiada pela movimentação contínua de viandantes, que lhes facultava os apoios necessários na realização das jornadas. Igrejas, capelas, conventos, pontes, fontes, estalagens e hospitais eram a garantia real do apoio entre as povoações. E os quadrilheiros proviam a conservação das calçadas, as forças regulares rondavam para impor a ordem, e a vizinhança, prestimosa e hospitaleira, informava, acudia e enchia de vida os campos e as bouças.
Mas este cenário foi-se apagando, lentamente, com a reconversão da rede viária, que criou novas alternativas e reformulou trajectos puídos pelo uso desde a ocupação romana.
Quando há meia dúzia de anos, a Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago, criada em Ponte de Lima para incentivar a redescoberta das peregrinações jacobeias, meteu ombros à tarefa de identificar o velho itinerário, de o recuperar e de promover a sua utilização e salvaguarda, não imaginava as dificuldades que se lhe poriam. Mas tudo foi superado – a investigação foi bem conduzida; os troços obstruídos foram limpos ou substituídos por alternativas pontuais; a direcção para Santiago foi sinalizada com as inconfundíveis setas amarelas (e o retorno com setas azuis para alcançar Fátima); e tem-se levado a efeito uma excelente promoção ilustrada com a publicação de brochuras e roteiros e, sobretudo, com o apoio logístico dos peregrinos que, em número crescente, vêm solicitando a sua intervenção.”
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